A segurança jurídica dos projetos REDD + e o Mercado de Carbono.

Na mesma semana em que o Projeto de Lei 412/2022 que institui o mercado carbono brasileiro (com foco em atividades industriais – ao menos nesse primeiro momento) foi aprovado1 na Comissão de Meio Ambiente (CMA) do Senado, notícias2 são veiculadas na mídia acerca de alegadas irregularidades em projetos de crédito de carbono REDD + desenvolvidos no Estado do Pará.

Conforme noticiado, as ditas fraudes estão relacionadas a questões fundiárias e socioambientais das áreas onde foram realizados os projetos. Questões estas que necessitam de atenção e averiguação antes da realização de qualquer projeto, especialmente os florestais propostos no bioma amazônico por se tratar de uma região de notória sensibilidade (considerando os diversos casos de conflitos de terra, grilagem, assentamentos rurais, comunidades tradicionais etc). 

O REDD +, incentivo desenvolvido no âmbito da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC), visa a Redução de Emissões provenientes do Desmatamento e Degradação Florestal, com o adicional de conservação de estoque de carbono florestal, manejo sustentável de floresta e aumento do estoque do carbono florestal3. Sua definição encontra-se prevista no art. 2º, XXII, no projeto de lei aprovado.

Para sua realização, há alguns atores envolvidos: (i) os proponentes, aqueles que controlam e se responsabilizam pelo projetos, por vezes o proprietário da área ou da tecnologia empregada, (ii) os desenvolvedores, que reúnem as informações, avaliam as metodologias e preparam a documentação necessária para o registro a partir da sua certificação, e (iii) os implementadores, que são os responsáveis pela operação da atividade executada no projeto, os que geralmente mantém um relacionamento direto com a comunidade local envolvida, e que pode ser o proponente, o desenvolvedor ou outra empresa especializada.

Atualmente, os créditos de carbono gerados a partir desses projetos são comercializados no mercado voluntário por empresas e interessados em compensar suas emissões ou que buscam o Netzero. Trata-se de modalidade muito comum em regiões tropicais e muito visada na região amazônica.

Os casos noticiados na mídia chamam atenção por sugerirem irregularidades relacionados a questões fundiárias e socioambientais em projetos de crédito de carbono de REDD +, que caso comprovados, colocam em risco a integridade e validade dos créditos emitidos e comercializados. 

As Ações Civis Públicas4 propostas pela Defensoria Pública do Estado do Pará em face dos proprietários, proponentes/desenvolvedores e do Município de Portel, pedem, em suma: (i) o reconhecimento do direito ao território tradicional, isto é, a posse ou a propriedade coletiva da terra às famílias beneficiárias dos Projetos Estaduais de Assentamento Agroextrativisitas (PEAEX) situados no município de Portel/PA, (ii) o reconhecimento da invalidade do Projeto de REDD + sobreposto aos referidos PEAEX, e dos negócios jurídicos dele decorrentes, visto que os envolvidos não são os proprietários ou possuidores das terras dos assentamentos, tampouco possuem qualquer anuência do Estado; (iii) impedir a entrada dos envolvidos nos assentamentos, para execução das atividades do projeto, (iv) reconhecer a invalidade dos Cadastros Ambientais Rurais elaborados ilegalmente, dentro dos perímetros dos assentamentos, (v) declarar nulo o Decreto Municipal de Utilidade Pública n. 2.873, do prefeito do Portel/PA; e (vi) condenar os requeridos ao pagamento de indenização por danos coletivos5

Vê-se, portanto, que o principal cerne da questão está na titularidade das propriedades envolvidas e a violação dos direitos de comunidades tradicionais. Segundo a defensoria, as áreas objeto dos projetos de crédito de carbono, diferentemente do que consta da documentação apresentada pela proponente à empresa certificadora (Verra) – como áreas 100% privadas, são na realidade áreas de floresta pública de posse de comunidades tradicionais6. Dessa forma, além de diversos vícios registrais apontados nas matrículas dos imóveis envolvidos, houve, a princípio, violação dos direitos das comunidades tradicionais agroextrativistas que ocupam essas áreas, inclusive ao da Consulta Livre, Prévia e Informada, prevista na Convenção 169 da Convenção Internacional do Trabalho – OIT.

Cabe registrar que, via regra, nos contratos de desenvolvimento de projetos de carbono florestais a responsabilidade pela regularidade dos imóveis, bem como por qualquer conflito inerente à terra, à titularidade, documentação, limites, confrontações, invasões, passivos ambientais, entre outros, fica a cargo dos proprietários das terras. Desse modo, expõe-se aqui a importância da realização de uma due diligence fundiária e ambiental antes celebração de qualquer iniciativa, com vistas a dar uma maior segurança jurídica às partes e aos projetos.   

Além disso, nessa seara de preocupações acerca da vulnerabilidade e da insegurança jurídica dos projetos de crédito de carbono por ausência de regramento claro referente a participação e repartição de benefícios derivados da geração de créditos de carbono em áreas tradicionalmente ocupadas por povos indígenas e comunidades tradicionais, a boa notícia é que caso o PL 412/2022 seja aprovado pela Câmara dos Deputados na forma em que está, o assunto está sendo devidamente tratado no art. 477, diminuindo mais uma lacuna desse mercado. 

Ainda que o mercado de carbono brasileiro se encontre em vias de regulamentação, medidas antecipatórias com o condão de dar uma maior segurança jurídica aos atores dos projetos se fazem necessárias. Além do due diligence, a interlocução com o poder público, órgãos de controle e comunidades afetadas, parece-nos medidas acertadas para a geração de hígidos créditos. 


1  O texto foi aprovado de forma terminativa na CMA em 04/10/2023, e deve seguir direto para discussão na Câmara dos Deputados.

2  Disponível em https://g1.globo.com/pa/para/noticia/2023/10/03/fraude-na-amazonia-projetos-de-credito-de-carbono-dizem-reduzir-o-desmatamento-mas-so-falaram-para-ribeirinhos-nao-abrirem-roca.ghtml

3 REDD+ é um incentivo desenvolvido no âmbito da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC) para recompensar financeiramente países em desenvolvimento por seus resultados de Redução de Emissões de gases de efeito estufa provenientes do Desmatamento e da Degradação florestal, considerando o papel da conservação de estoques de carbono florestal, manejo sustentável de florestas e aumento de estoques de carbono florestal (+). Disponível em  http://redd.mma.gov.br/pt/pub-apresentacoes/item/82-o-que-e-redd.

4  1. 0806505-59.2023.8.14.0015. Defensoria Pública do Estado do Pará vs. Brazil Agfor, LLC, Michael Edward Greene, Jonas Akila Morioka. Amigos dos Ribeirinhos Assessoria Ambiental Ltda.; Associação dos Ribeirinhos e Moradores; BLB Florestal Representação no Brasil Ltda., Município de Portel. 2. 0806631-12.2023.8.14.0015. Defensoria Pública do Estado do Pará vs. Floyd Promoção e Representação Ltda, Michael Edward Greene, Brazil Agfor, LLC, Jonas Akila Morioka, Avoided Deforestation Project (Manaus) Limited; 3. 0806582-68.2023.8.14.0015. Defensoria Pública do Estado do Pará vs.  RMDLT Property Group Ltda., Brazil Property Group Compra Venda e Locação de Imóveis Ltda, Brazil Agfor, LLC, Agfor Empreendimentos Ltda., Michael Edward Greene e Município de Portel 4. 0806464-92.2023.8.14.0015. Defensoria Pública do Estado do Pará vs. Associação dos Ribeirinhos e Moradores, Sindicato dos Produtores Rurais de Portel, Amigos dos Ribeirinhos Assessoria Ambiental Ltda, Brazil Agfor, LLC  e Município de Portel 5. 0806592-15.2023.8.14.0015. Associação dos Moradores do Rio Piarim para o Extrativismo vs. Michael Edward Greene, Brazil Agfor, LLC e Amigos dos Ribeirinhos Assessoria Ambiental Ltda.

5 ACP n. 0806505-59.2023.8.14.015, Vara Agrária da Região de Castanhal.

6 Importa registrar que a legislação atual permite em concessões florestais, a transferência de titularidade de créditos de carbono do poder concedente ao concessionário (art. 16, § 2o , Lei Federal 11.284/2006, alterada pela  Lei Federal 14.590/2023). Contudo, aqui não se trata de concessão, e sim de floresta pública de posse de comunidades ribeirinhas.

7 Art. 47. Fica assegurado aos povos indígenas e povos e comunidades tradicionais, por meio das suas entidades representativas no respectivo território, o direito à comercialização de Certificados de Redução ou Remoção Verificada de Emissões e de créditos de carbono gerados com base no desenvolvimento de projetos e programas nos territórios que tradicionalmente ocupam, condicionado ao cumprimento das salvaguardas socioambientais e às seguintes condições: I – o consentimento resultante de consulta livre, prévia e informada, nos termos da Convenção nº 169 da Convenção Internacional do Trabalho – OIT sobre Povos Indígenas e Tribais; II – a definição de regra para repartição justa e equitativa e gestão participativa dos benefícios monetários derivados da comercialização dos créditos de carbono e de Certificados de Reduções ou Remoções Verificadas de Emissões provenientes do desenvolvimento de projetos e programas nas terras que tradicionalmente ocupam, depositados em conta específica, conforme regulamento; III – apoio por meio de programas, subprogramas e projetos voltados para as atividades produtivas sustentáveis, a proteção social, a valorização da cultura e a gestão territorial e ambiental, nos termos da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas e da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais; e IV – a inclusão de cláusula contratual que preveja indenização aos povos indígenas e povos e comunidades tradicionais por danos coletivos, materiais e imateriais, decorrentes de projetos e programas de geração de Certificados de Redução ou Remoção Verificada de Emissões e de créditos de carbono. Parágrafo Único. O processo de consulta de que trata o inciso I do caput será custeado pela parte interessada, não cabendo tal ônus aos povos indígenas e aos povos e comunidades tradicionais.

Publicado dia: 09/10/2023

Por: Gleyse Gulin

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