O que a pesca da tainha e a prática do esporte ensinam sobre os limites da atuação legislativa municipal
My brother não vá
Entrar nesse mar
Não vai, não vai não
Hoje vamos ter, que ver o surf da beira
Tem rede no mar
Já faz tanto tempo que soltam as redes
Em qualquer lugar
(Pescador – Canção do Armandinho)
Passado o verão, o morador da Grande Florianópolis começa a se preparar para receber seus visitantes mais ilustres, pois chegando o frio, chegam também as tainhas. Já incorporado na cultura e gastronomia local, o início da safra da tainha, que ocorre entre 1º de maio e 10 de julho, é muito comemorado por nativos e pescadores tradicionais.
Acontece que, com o início da atividade pesqueira, começa um dos mais curiosos conflitos entre duas grandes paixões do litoral catarinense: a pesca e o surf. Isso porque a alocação das redes, muitas vezes, impede ou atrapalha a realização do surf, que, por sua vez, espanta os peixes.
Essa briga por espaço é muito bem apresentada na música Pescador, escrita por Armandinho, na qual, em determinado trecho da canção, o surfista chega a pedir apenas “um cantinho pra surfar”.
Buscando regulamentar a situação, o município de Florianópolis aprovou a Lei Ordinária 10.020 de 2016, que alterou a Lei Ordinária 4.601 de 1995 e que regulamenta as atividades náuticas nos balneários da cidade.
A atualização previu, expressamente, a permissão da prática do surf em todas as praias de Florianópolis, excetuando, porém, o período da safra da tainha. Foi permitida, de forma fixa, a atividade em locais específicos de 6 praias (Joaquina, Praia Mole, Lagoinha do Leste, Matadeiro, Armação e Moçambique), enquanto nas demais, para facilitar a visualização das restrições, foi criado um sistema de identificação por meio de bandeiras, em que a verde sinaliza a permissão e a vermelha a proibição do surf.
Descontentes com as medidas, 4 associações, que representam os interesses dos surfistas, entraram com um Mandado de Segurança Coletivo, alegando a inconstitucionalidade da Lei Ordinária 10.020 de 2016.
Como principal argumento, as associações afirmaram que o município teria invadido a competência legislativa da União, ultrapassando as suas atribuições constitucionais e extrapolando os limites entendidos como “interesse local”.
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 22, determina as matérias de competência privativa da União, ou seja, matérias que apenas a União pode legislar sobre. No artigo são mencionados o direito marítimo (inciso I), as águas (inciso IV) e o regime de navegação (inciso X). Além disso, agora no artigo 24, a Constituição Federal também determina que cabe à União criar normas gerais sobre “florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição” (inciso VI).
Aos municípios foi fixada a atribuição de legislar sobre temas restritos ao seu interesse local, ou suplementar as normas já elaboradas pela União ou pelos Estados (artigo 30, incisos I e II). Assim, trata-se de um escopo bastante reduzido em relação aos demais entes federativos.
A 2ª Câmara de Direito Público Tribunal de Justiça de Santa Catarina, ao se debruçar sobre a questão, entendeu de forma diferente ao alegado pelas associações.
Segundo o tribunal, o Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro permite aos Estados e municípios a criação de normas que regulamentem o uso das águas, estando, desse modo, autorizados a restringir certas atividades, como no caso, o surf.
Além disso, o tribunal também levou em consideração que a pesca artesanal da tainha é considerada em Santa Catarina, por força da Lei Estadual 15.922 de 2012 (consolidada pela Lei Estadual 15.565 de 2018), como patrimônio cultural. Dessa forma, a atuação de Florianópolis também estaria abrangida pela competência constitucional dos municípios para “promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local” (inciso XI do artigo 30).
Com base nesses elementos, a 2ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de Santa Catarina decidiu pela constitucionalidade da Lei Ordinária 10.020 de 2016, aplicando, entretanto, interpretação conforme ao dispositivo que regulamenta o sistema de bandeiras. Nesse sentido, foi determinado que, nos casos em que estas não forem colocadas, deve-se entender que o local é próprio para a prática do surf, presumindo que se trata de área autorizada, como se estivesse com bandeira verde.
Publicado dia: 12/06/2023
Por: Mateus Stallivieri
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