Existe um princípio da prevalência da norma ambiental mais restritiva?

O Brasileiro é criativo na hora de interpretar e formular princípios. 

Nos últimos anos, com o fenômeno da constitucionalização do direito, os princípios jurídicos tornaram-se uma importante ferramenta argumentativa e, quase como decorrência, multiplicaram-se, alguns importados de ordenamentos estrangeiros ou retirados de documentos internacionais e outros construídos através de leituras dos nossos próprios dispositivos internos. 

Quem atua no Direito Ambiental percebe, com bastante facilidade, o status cada vez mais central dos princípios na atividade jurídica, algo muitas vezes incontestado.  

Não é uma tarefa complexa encontrar petições iniciais de Ações Civis Públicas, Ações Populares ou Ações Diretas de Inconstitucionalidade que dediquem seus tópicos iniciais a um enquadramento dentro do princípio da precaução e prevenção (costumeiramente misturados e confundidos), princípio do não retrocesso ambiental, in dubio pro natura ou outros tantos que demandariam um artigo inteiro apenas para listá-los.

Acontece que os princípios não são ferramentas isoladas do ordenamento, precisando ser interpretados e utilizados dentro do contexto constitucional existente, e nesse sentido, algumas aplicações chamam a atenção. 

Ainda no Direito Ambiental, a existência de um suposto princípio da “prevalência da norma mais restritiva” é talvez o que mais desperta curiosidade. Em suma, o princípio – que talvez mais pareça uma regra – impõe que, na existência de eventual conflito legislativo, a norma que deverá prevalecer é a que gere a maior proteção ambiental, ou seja, a que melhor restrinja o uso dos recursos ambientais. 

Dessa forma, o princípio configura-se como uma verdadeira estruturação de todo o exercício legislativo nacional, balizando a aplicação de todas as normas existentes dentro do federalismo brasileiro, mais poderoso, inclusive, do que as disposições constitucionais de competências, previstas entre os artigos 21 e 31. 

Tudo muito bonito, e inclusive até romântico, se não fosse um detalhe: Ao longo dos 250 artigos da Constituição, e dos 120 presentes no preâmbulo, não existe sequer menção ao princípio. A tarefa de encontrar a sua previsão expressa em documentos internacionais também não parece ser exitosa.

Mas então, o que de fato diz a Constituição sobre as competências legislativas ambientais?

O artigo 22 apresenta uma listagem de temas que competem apenas à União legislar, enquanto o artigo 24 apresenta outra listagem, mas agora de temas cuja competência é “concorrente” entre a União, Estados e DF. Os parágrafos do artigo 24 explicam como funciona essa concorrência. 

Cabe à União formular normas gerais (§1º) e aos Estados e DF suplementá-las (§2º). Caso a União seja omissa em sua função, poderão os Estados e o DF instruir normas gerais (§3º), que permanecerão vigentes até a edição de lei por parte da União (§4º). 

Os municípios, por sua vez, poderão legislar sobre interesse local e suplementar a legislação estadual e municipal no que couber (artigo 31, I e II).

Duas dificuldades interpretativas surgem desse cenário. A primeira é que alguns temas podem ser enquadrados tanto como de competência privativa da União, como de competência concorrente. E a segunda é em relação à falta de regulamentação dos termos “normas gerais”, “normas suplementares” e “interesse local”, sendo desta segunda dificuldade que o “princípio da aplicação da norma ambiental” mais restritiva ganha força. Ao invés de enfrentar as complexidades de enquadrar determinada norma dentro dos conceitos, utilizando o princípio basta verificar qual é mais restritiva.

Acontece que, conforme já adiantado, aceitar essa possibilidade de aplicação seria simplesmente ignorar toda construção prevista no pacto federativo. Nossa Constituição não impede, de forma alguma, que uma lei estadual prevaleça em relação a uma federal, mesmo sendo mais flexível no tocante ao uso dos recursos naturais. Nesses casos, seria necessário verificar se trata-se, de fato, de uma competência concorrente, e em resposta positiva, se a determinação tem natureza geral ou suplementar. 

E mais, aceitar a prevalência de uma norma simplesmente por ser mais restritiva também poderia levar a manutenção de leis inconstitucionais, como no caso de uma norma da União que invada a competência estadual, ultrapassando seus limites para legislar sobre o caráter geral.

Por fim, também se ignora a enorme subjetividade que envolve decidir o que é “mais ou menos restritivo”. Além da proteção ambiental precisar ser entendida de forma balanceada com os demais elementos que formam o desenvolvimento sustentável (o crescimento econômico e o desenvolvimento social), o meio ambiente é complexo, cheio de especificidades, e como bem difuso permite diferentes entendimentos quanto a proteção das suas quatro vertentes: natural, artificial, cultural e do trabalho. 

Na prática, o que o princípio faz é criar uma nova arena para o processo legislativo, que não existe na Constituição Federal e inserida dentro do Judiciário, provocando, assim, maior insegurança jurídica e ampliação da judicialização.  

Publicado dia: 07/10/2022

Por: Mateus Stallivieri

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