Governo quer acelerar novas regras para demarcação de terras indígenas

Ideia é preparar um decreto que adote critérios mais rígidos e torne processo mais ágil

O governo vai acelerar a elaboração de um decreto que tornará os critérios para demarcação de terras indígenas mais rigorosos e ágeis. Fontes ouvidas pelo Valor afirmaram que o tema, que opõe produtores rurais e defensores da causa indígena, tinha pouca atenção do ex-ministro da Justiça e Segurança Pública Sergio Moro. Já o novo titular da pasta, André Mendonça, é tido como mais “sensível” à necessidade de mudar o regramento e estaria disposto a desenrolar o processo.

Procurado para falar sobre o assunto, o presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), Marcelo Augusto Xavier, evitou tratar de prazos, mas defendeu a necessidade de um novo decreto para dar segurança jurídica às demarcações pendentes. Em entrevista exclusiva ao Valor, ele também revelou que aguarda com ansiedade a aprovação pelo Congresso do projeto que regulamenta atividades de mineração nas terras indígenas. E antecipou que vai rever áreas que foram interditadas por relatos de presença de índios isolados.

“Nós temos que readequar o que está na lei com os entendimentos jurisprudenciais.

Em havendo uma mudança normativa, naturalmente vai se garantir maior transparência, contraditório e ampla defesa, segurança na cadeia de custódia da prova, maior participação dos entes federativos e dos interessados”, afirmou o presidente da Funai, que é delegado da Polícia Federal e está no cargo desde julho de 2019. “Precisamos definir um norte a ser seguido que contemple todos os interesses e saia do limbo que nós vivemos hoje.”

O atual regramento sobre as demarcações de terras indígenas, que compete ao Executivo, tem origem em um decreto presidencial de 1996. Cabe ao Executivo, mas há uma série de decisões judiciais definindo entendimentos diversos sobre o tema.

Desde o início do governo de Jair Bolsonaro, o setor do agronegócio pressiona por regras mais restritivas. Há críticas, por exemplo, em relação à extensão de prazos, número de procedimentos burocráticos, estudos exigidos e períodos para recursos.

Alinhado a esse entendimento, o presidente da Funai afirma que o texto em vigor é subjetivo e significa um convite à judicialização. Ele estima que 90% das pretensões de demarcação sejam alvo de litígio.

O decreto está sendo discutido com o Ministério da Justiça e Segurança Pública, e o texto deverá tratar apenas da demarcação para indígenas, deixando a questão quilombola para uma regulamentação posterior. Entidades que atuam em defesa dos indígenas entendem que o atual governo quer criar regras para dificultar o reconhecimento de áreas, enquanto Xavier diz querer assegurar a adoção de critérios técnicos.

O número de pedidos de reconhecimento de áreas habitadas por povos nativos não para de crescer. Segundo a Funai, há 485 pedidos de reconhecimento ainda na fase inicial, 119 procedimentos em estudo e outros 118 em estágio de delimitação e declaração, que são os últimos passos antes da homologação pelo presidente da República. Desde que assumiu o governo, Jair Bolsonaro não assinou nenhum processo de demarcação e deu reiteradas declarações contra a concessão de terras aos indígenas.

As áreas com processo de demarcação finalizado somam 117 milhões de hectares, o que equivale a aproximadamente 13% do território nacional, segundo dados da Funai. Se concedidos os últimos pedidos que já estão sob análise, o percentual atingiria 20% da área do país.

Um dos principais pontos dessa discussão chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF). Trata-se do chamado marco temporal, defendido pelos ruralistas, em que os povos nativos só poderiam requerer áreas que ocupavam na data em que entrou em vigor a Constituição de 1988. O critério foi adotado como reconhecimento do direito dos indígenas no polêmico julgamento da Raposa Serra do Sol (Roraima), em 2009.

A regra, no entanto, desagrada os povos nativistas, que veem necessidade de o poder público assegurar o direito originário à terra e considerar eventuais casos de expulsão ou violência que os afastaram dessas áreas.

Xavier disse que o ideal seria o governo editar o novo decreto de demarcações apenas após a decisão conclusiva do STF, que ainda não tem data prevista, de modo a ter segurança jurídica para os processos futuros.

“Se você permitir retroação muito grande no tempo, daqui a pouco você vai dar azo a que se ressurjam etnias de pessoas que saíram, foram embora para outras regiões do país, lá não deram certo, mas resolveram voltar porque um antepassado de 1800 viveu ali, possam reivindicar a área de alguém que já está lá”, acrescentou.

Citando algumas das sentenças judiciais como exemplo, o presidente da Funai disse que o órgão deu sequência no passado a projetos mal estruturados que vêm sendo derrubados nos tribunais.

“A gente quer ter um norte a ser seguido. Quando você começa com subjetivismo, é muito difícil estabelecer uma premissa para ser aplicada em todos os casos concretos”, argumentou. “Retirar isso [marco temporal] pode criar um embaraço muito grande. Qual o marco a ser seguido? Isso cria um problema social de insegurança jurídica.”

A discussão sobre áreas indígenas também gera disputas no âmbito de processos de regularização fundiária. A atual gestão da Funai mudou o entendimento sobre o reconhecimento de limites de propriedades privadas e passou a desconsiderar terras não homologadas. Na prática, a Instrução Normativa 09, assinada por Xavier, evitaria que processos em fase de estudo sobre áreas reivindicadas impedissem transações privadas. O assunto está sendo discutido na Justiça, em que o Ministério Público Federal (MPF) argumenta que a orientação da Funai fragiliza a proteção de possíveis áreas de povos tradicionais. Já houve decisões em primeira instância favoráveis e contrárias à instrução.

Sobre as terras em que já há reconhecimento de ocupação pelos indígenas, o presidente da Funai tem trabalhado para estimular as comunidades a formarem cooperativas e desenvolverem atividades econômicas. Uma das prioridades é a aprovação do projeto que tramita desde fevereiro no Congresso regulamentando atividades de mineração.

O tema divide opiniões de integrantes dos povos originários. “O que os indígenas reclamavam era de não serem ouvidos no processo, ainda que a decisão não seja vinculativa. Certamente, havendo decisão negativa [dos indígenas], a União vai tomar todas as cautelas necessárias para que haja preservação da etnia. Ninguém fará atividade predatória, para prejudicar os indígenas”, pontuou.

Para Xavier, a medida é fundamental para combater o garimpo ilegal e dar garantia de retorno financeiro equânime aos indígenas. Hoje, segundo ele, as atividades piratas estimulam a depredação ambiental e remuneram um pequeno grupo que faz acordos ilegais com garimpeiros.

“Quando o Estado não regulamenta, o campo fica fácil para marginalidade. Perdem os índios, o ambiente, o município e o Estado, que não arrecadam com tributação”, argumentou.

Xavier assegura que, se aprovadas pelo Congresso, as atividades ocorrerão mediante fiscalização dos órgãos públicos, garantindo segurança aos indígenas. O presidente da Funai contemporizou o fato de o projeto do governo não garantir poder de veto aos indígenas.

Além do estímulo a atividades econômicas, o presidente da Funai pretende rever a interdição de áreas pelo órgão após registros de possível presença de indígenas isolados. Xavier considera que há exagero nas restrições, provocando prejuízos à atividade privada.

“Temos muitos relatos inconsistentes, áreas onde houve registro de possível visualização de índios que ficam bem no limite com aldeias. E acontece de áreas ficarem isoladas por dez anos sem que ninguém amplie as buscas, sem nenhum outro sinal [de presença de isolados]”, destacou o presidente da Funai.

Seis territórios, que somam aproximadamente 1 milhão de hectares, estão nesta situação. O primeiro a ser revisto fica no Pará e já está em fase avançada de análise pelo órgão.

Fonte: Valor Econômico

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